24.04.2008
Como grande parte das festas religiosas cristãs, a Páscoa está repleta de tradições pagãs, assimiladas pela Igreja ao longo do tempo. Estas tradições estão intimamente ligadas aos rituais de fertilidade e renascimento das colheitas. Essa é a razão principal de ser celebrada no início da Primavera. A Páscoa na Ucrânia é a festa litúrgica mais importante de todo o ano, muito também devido a essas mesmas tradições pré-cristãs. Tentaremos, ao longo deste texto, compreender como esta época é vivida e qual a simbologia a ela associada.
Tradicionalmente, antes do Domingo de Ramos existe um período de 40 dias de jejum, em que não se deverá comer carne à Sexta-feira, bem como toucinho e seus derivados, ovos, manteiga ou mesmo efectuar actividades como cantar e dançar. Essa época de abstinência serve para preparar a alma, limpá-la de qualquer impureza, através também de penitência. O Domingo de Ramos, em que se festeja a entrada triunfal de Cristo em Jerusalém, é chamado na Ucrânia de “Domingo de Salgueiro” por dois motivos. Primeiro, porque nos primórdios não era fácil encontrar ramos de palmeiras na terra ucraniana e o salgueiro era uma das árvores mais importantes; segundo, e talvez seja esta a razão mais importante, porque tradicionalmente nos tempos pagãos era associada ao salgueiro uma forte simbologia. Esta árvore, que continha propriedades medicinais, era considerada uma árvore sagrada – como o carvalho para os celtas – e era uma das primeiras a mostrar os sinais de renascimento primaveril na Natureza. Acreditava-se que, ao baterem uns nos outros com os ramos recentemente floridos desta árvore, a energia, força e fonte de vida contida nesses ramos passava para as pessoas. Hoje em dia, nesse Domingo, esses ramos de salgueiro são bentos na igreja, e em seguida os jovens batem uns nos outros com eles e cantam uma canção que tem, como tradução livre, o seguinte:
Não sou eu a bater-te,
É o salgueiro que o faz,
Daqui a uma semana é a Páscoa,
Em breve o ovo vermelho terás!
Durante a semana seguinte são realizadas as preparações para a grande festa, a Páscoa. Essa semana é vivida em grande azáfama, limpando toda a casa e preparando todo o tipo de comida que as pessoas só poderão comer quando o jejum acabar. São muitos os ingredientes envolvidos, como os ovos, toucinho, beterraba e rábano. É feita a paska (pão especial ritualístico) e os ovos são cozidos e pintados (pysanky). Mas tomemos atenção particular sobre estes dois últimos elementos, talvez os mais significativos de toda a tradição pascal.
Uma das mais importantes tarefas de todo o ano era a feitura do pão, chamado Paska. Chegava-se a acreditar que era possível predizer o futuro só pelo resultado da cozedura deste pão tão especial: o resto do ano seria bom se o pão ficasse grande, claro e fofo. Para ficar assim, há uma quantidade de gestos, rituais e encantações que é necessário realizar enquanto o pão é feito e cozido. Todo esse cerimonial é bonito e pleno de significado. Começa-se por preparar a massa. A dona-da-casa tem de pensar somente pensamentos puros e bons enquanto amassa os ingredientes. Depois de bem amassada, a massa da paska é colocada numa almofada branca, para ficar clara. Quando vai para o forno, a mulher diz, como uma espécie de encantamento: “Santa paska, sejas grande e bela como o sol, porque estamos a assar-te para o sol. Que todos os membros da nossa família sejam saudáveis. Que as nossas crianças cresçam tão depressa como tu. E que tu saias do forno tão bela como entraste”. Ninguém pode fazer barulho ou sequer sentar-se, com o prejuízo de o pão abatumar e ficar plano. Também não se deve deixar entrar em casa ninguém estranho, ou mesmo os vizinhos, enquanto o pão estiver no forno, para evitar maus-olhados ou alguma maldição. Muitas vezes a decoração na parte superior tem símbolos importantes, feitos com bocados da massa, em forma de cruz, pinheirinhos, abelhas, folhas, rosetas ou até mesmo pássaros, como reminiscências dos antigos cultos ao sol, à Natureza e às colheitas.
Depois de pronta, a paska é envolta num pano tradicional de linho bordado, denominado rushnyk e levado pelo pai de família à igreja, para ser abençoado durante a cerimónia que se segue à Missa da Ressurreição, à meia-noite. A paska é normalmente levada num cesto, recheado com outros alimentos, bem como sementes de girassol e papoila e os famosos ovos ucranianos, os pysanky. Logo após a cerimónia, a família volta rapidamente a casa e toma o pequeno-almoço de Páscoa com os alimentos abençoados, acompanhados normalmente com horilka.
O ovo tem uma grande simbologia, sendo um vestígio bem explícito da tradição pagã. Simbolizava a criação, o renascimento na Natureza, o sol, a lua, os elementos e uma boa colheita. Agora representa a unicidade da Santíssima Trindade, Deus, e as linhas pintadas, que parecem não ter fim, simbolizam a eternidade. As pinturas são feitas numa base de cera, muito coloridas e os ovos são cozidos e decorados, normalmente, pelas mulheres da casa durante o Jejum. Elas, após uma pequena prece, pintam esses ovos enquanto entoam canções e conversam, longe dos homens, num ambiente de grande secretismo. Os padrões de desenhos, as combinações de cores e os motivos decorativos muitas vezes são específicos de cada família ou até da própria vila. Alguns especialistas conseguem identificar a proveniência desses ovos exactamente por isso.
Esses ovos são dados entre as pessoas como sinal de afecto e amizade. As suas cascas são depois colocadas em água – normalmente num rio – para as almas (rakhmany). O culto aos mortos também tem um papel fundamental nestas comemorações Primaveris/Pascais, como mais abaixo falaremos. Muitas vezes, os ovos pysanky são depositados nos túmulos de familiares mortos ou mesmo enterrados perto deles. Outras vezes são oferecidos aos pobres.
As crianças costumam fazer batalhas de ovos krashanka, para verem quem tem o ovo mais forte. Na Ucrânia, quando as crianças são pobres e famintas, aquele que vence a batalha fica com o ovo.
Quanto à tradição litúrgica, na Quinta-feira Santa (Velykiy Chetver/Strasty Chrysta) é comemorada a Paixão de Cristo, assim como na Sexta-feira Santa, a Crucificação. Nas missas desses dias são acendidas velas e a Igreja providencia a “plashchenytsia”, que representa a mortalha de Cristo, para quem os fiéis rezam.
No Sábado de Aleluia há uma missa à meia-noite, seguida de uma procissão de velas, dando três voltas à igreja, levando estandartes, e exclamando “Hrystos Voskres” (Cristo Ressuscitou!). Nessa altura, são retirados os panos negros que cobrem o interior da igreja durante o Jejum e, ao voltarem para o interior do templo, os fiéis podem celebrar a alegria da Ressurreição com todas as flores, cores e vivas decorações que novamente se encontram na igreja. Depois da missa, os cestos pascais são abençoados. O cesto da Páscoa deverá conter, então, os seguintes elementos:
Em pequenas quantidades
PASKA |
Coloca-se uma vela ao centro da paska quando o padre começa a cerimónia de benção |
PYSANKY |
Ovos da Páscoa, com desenhos geométricos específicos, renovados todos os anos |
KRASHANKY |
Ovos pintados, de várias cores, mas obrigatoriamente um vermelho |
BACON |
Ou outro tipo de carne fumada |
SAL E PIMENTA |
Em pequenas quantidades |
MANTEIGA |
Colocada num pequeno prato ou por cima do queijo, a manteiga tem de estar num formato geométrico perfeito e bem decorada com cravinho |
QUEIJO |
Queijo doce: uma mistura com açúcar, canela, passas de uva, noz moscada e cravinho, colocado num prato, com a manteiga por cima |
HRIN |
Um bocado da raiz de rábano ou preparada de forma especial com beterraba |
KOVBASA |
Salame |
SEMENTES |
De várias plantas, mas principalmente papoilas e girassol |
SALO |
Toucinho |
A Páscoa é passada em família, com comida, bebida e as danças e canções rituais da Primavera, chamadas hayivky. No Domingo de Páscoa as jovens dançam e cantam à frente da igreja ou no cemitério. Nos tempos pagãos o hayivky era realizado em bosques com água, pois acreditava-se que teriam uma função mágica na obtenção da ajuda da Primavera, mandando o Inverno embora. Ou seja, essas danças e cantares simbolizavam o funeral do frio invernal. Também serviam de imitação do crescimento das colheitas, certificando-se do seu sucesso através da magia da música, das palavras e dos gestos corporais. O povo podia assim evocar todos os espíritos benéficos da recém-acordada Natureza de forma a garantir-lhes sorte e saúde ao longo do ano.
Os temas tratados no hayivky são variados: algumas danças imitam o circuito solar no céu, outros a vida humana na terra; por vezes louva-se a beleza e a juventude das jovens casadoiras. Nos dois dias seguintes é a Polyvanya, um ritual que envolve os jovens especificamente. Os rapazes jogam água, normalmente nas mãos das raparigas, e dizem: “Hristos Voskres!”, respondendo as moças “Voyistynu Voskres!” (De facto Ressuscitou!). Normalmente os rapazes exageram, mas as moças têm oportunidade de se vingarem no dia seguinte, na Terça-feira, o seu dia de “polyvanja”. Este é um ritual de grande sociabilidade entre homens e mulheres.
O culto dos mortos é vivido de forma especial, talvez por ser uma época de renovação e ressurreição. Eles são lembrados na Quinta-feira e por toda a semana após a Páscoa, denominada de Semana das Ninfas (navskyi tyzhden), em especial no Domingo a seguir ao da Páscoa, chamado Khomyna ou Providna. Nesse dia as pessoas se reúnem e vão para o cemitério junto à igreja, levando consigo um prato com alguma comida típica desta quadra, como a que se vê nos cestos de Páscoa, e também vinho ou licor. O que sobra é aí deixado. Em algumas zonas da Ucrânia, depois dessa refeição compartilhada com os antepassados, há jogos, música e dança. È assim o culminar dos festejos pela renovação da Natureza, do ciclo da vida e da Ressurreição de Cristo.
A todos, imigrantes e não imigrantes, os meus votos de Feliz Páscoa! Hristos Voskres!
Aline Gallasch Hall
Аліна Холл
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