Luís Ribeiro
O colóquio e exposição hoje inaugurada têm lugar
num momento particularmente significativo. Com efeito, o ano de 2009
assinala o encontro de duas efemérides: os 20 anos da queda do império
soviético e os 50 anos do falecimento de Raphael Lemkin, o autor do
conceito de genocídio. Mas a ligação entre Lemkin e a União Soviética
não se limita à mera coincidência comemorativa. Como iremos ver, ao
longo do seu percurso académico e cívico, ele dedicou uma especial
atenção a esse país, e em particular à Ucrânia.
Nascido em 24 de Junho de 1900, no seio de uma família de judeus da Rússia Imperial, frequentou nos anos 20 a Universidade de Lviv, então pertencente à Polónia.
Escolheu o curso de Direito devido ao impacto que lhe causou o homicídio, em 1921, de Talaat Pasha, um dos dirigentes turcos responsáveis pelo genocídio arménio. Apesar de considerar a sua morte um acto legítimo, Lemkin lamentou a ausência de uma lei internacional que punisse os responsáveis por crimes contra o género humano.
É com esse objectivo que, em 1933, apresenta numa conferência promovida pela Sociedade das Nações em Madrid, uma comunicação sobre aquilo que designa como “actos de barbárie”, e que estará na origem do seu conceito de genocídio.
Enquanto cidadão polaco, Lemkin não podia deixar de estar atento à situação do país vizinho, a União Soviética, e em especial, à imensa tragédia causada pela ofensiva estalinista contra o mundo rural, nomeadamente a colectivização agrícola, a campanha de deskulakização, as deportações, e naturalmente, a Grande Fome de 1932-33.
Em consequência da invasão da Polónia pelas forças alemãs e soviéticas em 1939, Lemkin refugia-se nos Estados Unidos da América, onde publica cinco anos depois, a obra Axis Rule in Occupied Europe. Neste livro, descreve a política de terror sistematicamente empreendida pelo regime nazi, tendo como referência um novo conceito legal: o genocídio.
Após a derrota do Nazismo, Lemkin vê no sistema comunista, que dominava o seu próprio país de origem, uma nova ameaça à civilização. As suas convicções conquistam grande apoio entre as comunidades anticomunistas oriundas da Europa Oriental, desenvolvendo estreitas relações com as diásporas báltica e ucraniana.
No dia 18 de Janeiro de 1953, o New York Times informa que Lemkin apelara às Nações Unidas para que condenassem a União Soviética e os países-satélites pelo crime de genocídio, mencionando especificamente a “perseguição aos Judeus”— numa clara referência à alegada Conspiração dos Médicos forjada pela paranóia anti-semita de Estaline.
Passados dois meses, Lemkin regressa à questão do “genocídio soviético”, escrevendo num artigo o seguinte: “É uma ironia da História que oito milhões de ucranianos tivessem de morrer numa fome genocidária, que milhares da fina flor do povo ucraniano tivessem de ser massacrados em Vinnitsia, e que inúmeros homens, mulheres e crianças ucranianas tivessem de perecer nas minas de sal, para que a consciência do Mundo ficasse realmente abalada.” O autor elogia a diáspora ucraniana por ter “explicado ao Mundo o trágico significado de genocídio” e “apelar para que o genocídio soviético seja investigado pelas Nações Unidas.” Declarou ainda o seguinte: “Devemos aproveitar todas as oportunidades para manter a atenção do Mundo […]. O próximo aniversário da fome artificial de 1933 constitui uma boa oportunidade para uma melhor divulgação […].”
No âmbito dessa divulgação, a comunidade ucraniana de Nova Iorque promoveu uma manifestação em memória das vítimas da Grande Fome, no dia 20 de Setembro de 1953. Entre os oradores, encontrava-se Raphael Lemkin, cuja intervenção tem como base um artigo da sua autoria intitulado “Genocídio Soviético na Ucrânia”.
Esse artigo de oito páginas encontra-se actualmente no Departamento de Manuscritos e Arquivos da Biblioteca Pública de Nova Iorque juntamente com outros textos destinados ao seu grandioso, mas nunca concretizado, projecto de uma história do genocídio, desde a Antiguidade até à Época Contemporânea.
Nele, Lemkin descreve o genocídio ucraniano como sendo a concretização, pelo regime estalinista, de uma política de destruição da nacionalidade, consubstanciada nas seguintes etapas: 1.ª) a eliminação das elites nacionais, 2.ª) a destruição da Igreja nacional, 3.ª) o extermínio de uma fracção considerável do campesinato ucraniano, e 4.ª) a diluição identitária do povo ucraniano através de transferências populacionais.
Importa sublinhar que para Lemkin, o regime soviético não tem em mente o aniquilamento total da nação ucraniana, ao invés do genocídio da população judaica pela Alemanha nazi. Na sua perspectiva, a eliminação da intelligentsia, da Igreja e dos camponeses ucranianos é, por si só, suficiente para destruir “a componente que manteve e desenvolveu a sua cultura, as suas crenças, os seus ideais colectivos, que a guiou e lhe deu uma alma, em suma, aquilo que a fez ser uma nação em vez de um mero conjunto de pessoas.”
Na verdade, ao longo da narrativa das quatro etapas do processo destrutivo, o autor sublinha permanentemente o seu carácter nacional, que inclui as principais vítimas do genocídio— os camponeses— vistos como “o repositório” do “espírito nacional” e cujas características fazem deles “uma cultura e uma nação.”
A este propósito, como não lembrar as palavras carregadas de significado de Estaline, que já em 1925, declarara “Os camponeses consideram-se a si mesmos como a força básica do movimento nacional […] É isto que nós queremos dizer, quando afirmamos que a questão nacional é, efectivamente, uma questão camponesa”?
No que respeita à questão da intencionalidade— o segundo elemento crucial na definição de genocídio— a abertura dos arquivos soviéticos, na sequência dos acontecimentos de há 20 anos atrás, proporcionou, finalmente, os necessários elementos de prova, com destaque para a directiva de Estaline de 22 de Janeiro de 1933 e a sua correspondência com Kaganovich a propósito da situação crítica na Ucrânia.
Com efeito, o decreto de 22 de Janeiro de 1933 ao ordenar o bloqueio da Ucrânia e do Kuban, uma região do Norte do Caúcaso de maioria étnica ucraniana, agrava de forma intencional a fome que devastava os territórios de população ucraniana. Por sua vez, na correspondência com o seu braço-direito, Lazar Kaganovich, Estaline evoca, em tom dramático, a necessidade de enfrentar, sem olhar a meios, a ameaça do nacionalismo ucraniano visto como um obstáculo ao projecto de construção de um Estado soviético centralista e ditatorial.
A abordagem de Lemkin do processo de destruição da Ucrânia enquanto nação, revelou-se, na época, bastante inovadora e continua a ser de grande actualidade, tendo permanecido durante mais de meio século praticamente desconhecida, e muito raramente sendo mencionada nas obras dedicadas à Grande Fome ou nos estudos sobre genocídio.
Por fim, em 2008, o texto passou a ser do conhecimento público, permitindo-nos concluir que Lemkin foi o primeiro académico do Ocidente a debruçar-se sobre aquilo que o Parlamento Europeu, em Outubro do mesmo ano, qualificou muito justamente de “terrível crime contra o povo ucraniano e contra a Humanidade” — o Holodomor.
|